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26 de Abril de 2024
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    Constitucionalismo intercultural deve reconhecer diversidade de culturas

    Publicado por Consultor Jurídico
    há 13 anos

    Lincharam um homem

    Entre os arranha-céus,

    (Li no jornal)

    Procurei o crime do homem

    O crime não estava no homem

    Estava na cor da sua epiderme. [1]

    Segundo Peter Häberle, aConstituiçãoo prescreve valores que fundamentam cultu ralmente uma sociedade aberta e é, nesse sentido, ela mesma um processo aberto.[2] Desta forma, não é tão somente um texto jurídico ou um código normativo, mas também a ex pressão de um nível de desenvolvimento cultural, instrumento da representação cultu ral autônoma de um povo: ao mesmo tempo, reflexo da herança cultural e fundamento de novas esperanças.[3] Daí sua insistência na possibilidade de mudança de significado da norma constitucional sem que tenha havido a reforma de seu texto e de que as Constituições viventes são obra de todos os intérpretes constitucionais da sociedade aberta.[4]O Dia da Consciência Negra, associado à imagem de Zumbi dos Palmares, aliás, um dos heróis da pátria (Lei 9.315/96), comemorado em 20 de novembro de cada ano, em mais de 757 cidades do país (segundo dados de 2009),[5] recoloca a questão de outros atores sociais interpretando os textos constitucionais e legais, confluindo neles experiências cul turais de um povo e nutridas esperanças.[6] Ainda mais quando se encontra, temporal mente, cerca de um mês apenas da celebração do Dia Internacional dos Direitos Humanos, em decorrência da assinatura, em 1948, da denominada Declaração Universal.Não há lei nacional a fixar o referido feriado e mesmo a adesão dos municípios não impediu a contestação, judicialmente realizada, em outras localidades, por violação à Lei 9.093/95, que somente se refere a feriados religiosos. Não é demais lembrar que a Constituição de 1988 estabeleceu que as datas comemorativas devem refletir a diversi dade cultural (artigo 215, 2º) dos diferentes segmentos étnicos nacionais, a demons trar que a Constituição é cultura em muitos níveis e diferenciações.[7] A própria ONU re conheceu, no Relatório PNUD 2004, que os feriados nacionais são um meio importante de reconhecer - ou ignorar - identidades culturais.[8]Porto Alegre, Alvorada e Pelotas, justamente no estado onde surgiu a própria pro posta de comemoração da data[9], e Florianópolis são exemplos da resistên cia local, em especial no Sul do país, à instituição do feriado, em alguns casos sustentando prejuízos ao comércio (alegações, por exemplo, que não foram levantadas nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro), sendo acatados pelos Judiciários estaduais. Justamente quando se comemoram 315 anos em que o líder negro, depois de traído e denunciado, foi encontrado e degolado. A demonstrar, aliás, a violência colonial contra os insurgentes (re corde-se que Tiradentes foi enforcado, degolado e teve o corpo esquartejado, em quatro partes, distribuídas pelos lugares onde fez discursos no estado de Minas Gerais).A data significa um intento parcial de descolonização, inclusive dos feriados municipais (em geral, associados aos santos católicos), ao mesmo tempo em que questiona o próprio processo de abolição, o legado cultural que associa o fim da escravidão com a extirpação da discriminação contra o negro e à emergência de uma democracia racial, o ideário valorizador de uma mestiçagem que é, em verdade, construída a partir de um passado eurocentrado. Na realidade, a desconstrução do antigo 13 de maio (com a bondosa princesa Isabel, de ascendência europeia)[10] e uma ressignificação do passado brasileiro, a partir das vozes negras silenciadas, suprimidas ou invisibilizadas.Tratou-se, pois, quando de sua afirmação como proposta, de contrapor as figuras do preto velho, da mãe preta e do negrinho do pastoreio por líderes libertários: enquanto os primeiros representavam a resposta submissa e acomodada à escravidão, Zumbi simboli zava a resistência corajosa e engajada ao regime escravo, procurando-se passar uma men sagem de consciência e libertação para os descendentes de africanos na contemporaneida de.[11] Afinal, no entender do movimento negro,Palmares foi o berço da nacionalidade brasileira, ao se constituir como efeti va democracia racial, e Zumbi, o símbolo vivo da luta contra todas as formas de opressão.[12] Nas palavras do poeta negro pernambucano Solano Trindade (1908-1974):[13] Treze de maio que não é mais de preto velho,

    do pai João, da mãe Maria, do negrinho do pastoreio.

    Treze de maio que não é mais

    do misticismo, da simpatia, do despacho.

    Treze de maio da juventude negra

    lutando por outra libertação

    ao lado da juventude branca

    contra os senhores capatazes

    capitães-do-mato

    que permanecem vivos

    cometendo os mesmos crimes

    as mesmas injustiças

    as mesmas desumanidades...

    Treze de maio dos poetas conscientes. Tendo em vista que a interpretação constitucional é um assunto de toda a socieda de aberta, de todas as potencialidades públicas e de partícipes materiais, e os feriados e as celebrações podem constituir a expressão da esperada ou realizada integração de um grupo étnico dentro do povo em geral, [14] quais as lutas que irmanariam as causas do mo vimento negro e dos direitos humanos? Inúmeras possibilidades poderiam ser destaca das. Salientem-se algumas.1. A discussão das políticas de ações afirmativas, em especial no campo educacio nal. São dois tipos distintos de ações que se encontram pendentes de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal TF: as ADIs 3.330, 3.314 e 3.379, que se encontram apensadas, questionando o Prouni, a primeira com julgamento já iniciado, voto favorável do ministro Carlos Ayres Britto e pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa; b) a ADPF 186- 5/DF, questionando o corte racial dado pela Universidade de Brasília, bem como a ADI 3.197, envolvendo o sistema adotado pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro. Este segundo bloco foi objeto de audiên cia pública (as anteriores, aborto por anencefalia e células-troncos, envolviam matéria mé dica), discutindo os argumentos favoráveis e contrários à adoção de políticas de corte raci al, bem como a avaliação das iniciativas por parte das universidades que as implementa ram.[15] Tratou-se de iniciativa inédita no STF, considerando que tanto no caso Raposa Serra do Sol quanto na ADI dos quilombolas não houve qualquer intenção de aceitar uma audiência pública.Os dados constantes do Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil- 2005 (Ra cismo, Pobreza e Violência), elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [16] são extremamente reveladores: Entre os adultos, a porcentagem de negros com grau universitário observada no Brasil em 2001 (2,5%) foi atingida nos Estados Unidos em 1947 - em plena era de segregação, intolerância e violência racial aberta, anterior ao crescimento do movimento por direitos civis e muito antes do surgimento das políticas de ação afirmativa na educação. A proporção dos brancos brasileiros com nível superior em 2001 (10,2%) foi alcançada pelos brancos americanos em meados da década de 1960. No caso da África do Sul, em 1995, 2,2% da população negra de 30 a 49 anos de idade era portadora do grau universitário, enquanto no Brasil, no mesmo ano e na mesma faixa etária, esse índice atingia 2,9%. Como o regime do apartheid só terminou em 1994, conclui-se que o sistema universitário desse regime foi capaz de produzir, para a população negra, resultados muito semelhantes aos do sistema educacional supostamente integrado, universalista e racialmente democrático do Brasil. Uma pergunta a ser feita seria: não existindo nem a segregação dos Estados Unidos nem o re gime de apartheid da África do Sul, como foi possível ao Brasil, democracia racial, ter re produzido o mesmo tipo de relações desiguais e hierárquicas? Como explicar que 65% dos estudantes de Medicina da UFBA são brancos, ao passo que a população negra chega a 70%?Se tais ações tocam, como sustenta o ministro Gilmar Mendes, em questões ligadas à identidade nacional e ao conceito que o brasileiro tem de si mesmo, deve-se ter em conta, no julgamento: o processo de racismo institucionalizado; o baixo reconhecimento da dura realidade da população negra e dos distintos matizes de racismo; a avaliação da implementação das medidas pelas universidades públicas neste período; o princípio da igualdade em sua matriz substancial e o obscurecimento de que a manutenção da situação atual significa, por via oblíqua, uma ação afirmativa branca; o caráter de experimenta lismo das soluções aventadas e, portanto, da insuficiência da neutralidade não racial até então adotada. Destaquem-se, ainda: a) dificuldade de distinguir ações afirmativas de cotas, das quais são tidas sinônimas; b) a centralidade da discussão em termos de pa drões de Estados Unidos, quando se sabe que as primeiras experiências são originárias da Índia (envolvendo os dalits) e na Malásia (envolvendo a maioria malaia, desprestigiada em relação a uma minoria afluente de origem chinesa), na chamada Bumiputra policy.[17] Do que se trata, pois, também, é de reconhecer a multiplicidade de versões de negritude, a interseccionalidade das diversas discriminações, a inexistência de um modelo único de combate à discriminação no campo educacional, a defesa da variedade de escolha de pensamentos. Em suma: descentrar os Estados Unidos dos estudos sobre a negritude e reconhecer a existência de alternativas credíveis, não eurocentradas, de combate aos racismos.[18]As poucas experiências anteriores do STF em abordar questões de diversidade cul tural, contudo, não indicam, ainda, a possibilidade de adoção de um constitucionalismo in tercultural, do reconhecimento da diversidade e de um novo equilíbrio entre igualdade e diferença. O julgamento Raposa Serra do Sol, nesse sentido, foi marcado pelo etnocentris mo e pela primazia dos valores da sociedade hegemônica, em detrimento do reconheci mento da sociodiversidade étnica, linguística e cultural.2. A questão do reconhecimento da propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras. Talvez neste ponto seja onde a discussão envolvendo racismo e direitos humanos mais tenha ainda a avançar. Se o artigo 68-ADCT, determinando a emissão dos títulos pelo Estado, constituiu, à época, uma determina ção que buscava resgatar experiências negras de resistência, justamente no centenário da abolição, o fato é que as titulações, passados mais de 20 anos, são em número reduzido, a execução do orçamento em relação às políticas do Brasil Quilombola é baixíssima, as comunidades travam batalhas jurídicas com mineradoras e grandes empresas.Aqui, seria necessário cuidar de duas questões distintas quanto à racialização: a primeira, envolvendo a legislação, que sempre tem sido considerada de corte não racial, ao contrário dos Estados Unidos e da África do Sul; a segunda, envolvendo a racialização de negros e indígenas. No tocante à primeira, observe-se que a Lei de Terras de 1850, ao estabelecer como única possibilidade de aquisição de terras a compra, ignorou as distintas formas de posse que eram até então utilizadas, acelerou o processo de expropriação de terras indígenas e ainda impediu o acesso da terra às comunidades negras, no período pós-abolição. Não é mera coincidência que ela tenha vindo com a Lei Eusébio de Queirós, proibindo o tráfico negreiro.O mesmo se deu, no advento da República, com o Código Penal: ao penalizar a vadiagem e a capoeira, atinge, predominantemente, a população negra recém-liberta e suas manifestações culturais. Os terreiros de candomblé necessitavam, para seu funcionamento, de autorização da Polícia, e, em alguns estados, exigia-se, ainda na década de 1960, dentre outras condições, prova de idoneidade moral e de sanidade mental, comprovada por laudo psiquiátrico, dos responsáveis pelos cultos (por exemplo, Lei 3.443/66, da Paraíba).[19] Da mesma forma, o artigo 2º do Decreto 7.967/45, dispondo sobre o ingresso de imigrantes, tinha em vista a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da sociedade, as características mais convenientes de sua ascendência. Sob uma alegada neutralidade da legislação, escondia-se um caráter racializado da normatização. Como afirmou recentemente Ira Katznelson em relação à legislação do New Deal: uma verdadeira ação afirmativa para brancos.[20] Apropriação de terras e racismo, portanto, continuaram a ser legados pendentes do período da independência.No tocante à segunda, o reconhecimento de distintas formas de racializa ção, em relação a afrodescendentes e indígenas, implica que o modo diferente pelo qual os dois grupos foram historicamente racializados afeta as respectivas capacidades para afir mar uma identidade cultural de grupo distinta[21], que, muitas vezes, passa pela afirmação de língua, usos, costumes e cultura distintos. Daí porque tanto o enquadramento das comunidades quilombolas e de outras comunidades tradicionais no sistema jurídico de proteção da Convenção 169-OIT quanto às pautas hermenêuticas constitucionais que associam o artigo 68 do ADCT com o artigo 231 da Constituição, se podem ser consideradas como exitosas no sentido de afirmar uma especificidade cultural, trabalhando com o reconheci mento cultural, não podem constituir, neste mesmo processo, num descuido em relação à luta contra a discriminação racial. O fato de índios e afrodescendentes sofrerem os dois tipos de injustiça deve alertar para a necessidade de promover, simultaneamente, as duas políticas, para a qual, contudo, há que se dar atenção especial à identificação e eliminação "de todas as formas de racismo institucionalizado, ou seja, o racismo que reside de forma aberta ou encoberta nas políticas, nos procedimentos, nas práticas e na cultura das institui ções públicas e privadas".[22]Ariel Dulitzky, analisando a jurisprudência da Corte Interamericana, recentemente destacou algumas dificuldades neste sentido[23]: a) a aproximação cultural opta por localizar geograficamente somente as comunidades rurais que podem demonstrar sua indianidade ou africanidade de uma maneira cultural determinada, podendo produzir efeitos no interior do movimento negro, obrigando a ressaltar a identidade cultural antes que a racial; b) deve ser avaliada durante o processo de litígio, a possibilidade de ocorrência de conflitos intra e inter comunitários que possam emergir; c) a corte deveria ser mais casuística em suas decisões, evitando repetir mecanicamente prévias decisões que, não necessariamente, se adéquam às particularidades de cada caso ou ao contexto legal, político, social ou econômico no qual se produzem as diferentes reclamações; d) a falta de proteção efetiva dos territórios indígenas e negros não pode e não deve ser considerada exclusivamente como um problema de falta de reconhecimento de suas particularidades distintivas, mas sim de discriminação e marginalidade a que os Estados os submetem. Para ele, uma aproximação com a perspectiva da igualdade e não discriminação permitiria considerar as desigualdades e racismo estrutural de que são vítimas indígenas e afrodescendentes. Mas ela envolve também questões de injustiça cognitiva: a) é que em se tratando destas comunidades, a proprie dade não tem sido nem a forma pública, estatal, nem aquela tradicional, ou seja, a privada, de feitio civilista dos códigos, não estando, portanto, associada à mercadoria e não se enquadrando nos cânones ensinados nas faculdades de Direito (na realidade, um heterodoxo instituto de Direito Constitucional; b) as provas, vindas aos autos estão fundamentadas em laudos antropológicos e história oral, o que nem sempre vem sendo reconhecido como objetivo ou científico para profissionais que estão acostumados com provas documentais (dentro de um cânone que valoriza o escrito em detrimento ao oral). Esta distinta forma de perceber, entender e se relacionar com o mundo foi bem descrita, em relatos orais no Equador recolhidos por Juan Salazar, nestes termos:[24] Nossos antepassados chegaram para semear nestes territórios suas formas de vida quando aqui não havia ninguém e ninguém queria viver aqui. Por isso, para os mais velhos e para nós, seus herdeiros, nosso mundo são estes territórios e não buscamos apropriar o mundo dos outros. Porque sabemos que cada povo necessita de um território para viver. 3. O combate, no plano judicial, da questão do racismo. A Constituição de 1988, ao contrário das anteriores, foi bem rigorosa com a prática do racismo: tanto estabeleceu reprimenda no plano interno, com pena de reclusão e caráter de imprescritibilidade e inafi ançabilidade (artigo 5º, XLII), quanto fixou como princípio a ser observado nas relações internacionais (artigo 4º, VIII). O que estabelece, para o Estado, um dever fundamental positivo e negativo: a) de um lado, impedir qualquer conduta, prática ou atitude que incentive, prolifere ou consti tua racismo; b) tomar medidas cabíveis, possíveis e necessárias para a erradicação de tal prática. Mandamento constitucional que obriga não somente a União, mas também esta dos e municípios, por meio de seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Mais que isto. A Constituição: a) determinou que a lei punirá qualquer discriminação aten tatória dos direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, XLI); b) previu, em hipótese excep cionais, a federalização as causas relativas a grave violação de direitos humanos, para o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internaci...

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