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4 de Maio de 2024

Prevalência da liberdade religiosa e o direito à vida

Publicado por Consultor Jurídico
há 11 anos

O título deste artigo já por si deveria provocar todos os nossos alarmes e cuidados. É certo que, contemporaneamente, na moderna teoria e dogmática constitucional, poucos colocam em questão o fato de que não possa existir hierarquia entre os direitos fundamentais. Num quadro em que o próprio poder constituinte é o caso do Brasil se eximiu de estabelecer qualquer prevalência em abstrato de qualquer dos bens tutelados por normas de direitos fundamentais, consentir com que tal hierarquia fosse fixada por órgãos que têm apenas a função de interpretar e concretizar a Constituição seria em antiga advertência de Francisco Campos aceitar que esses órgãos tivessem primazia sobre o próprio poder constituinte.

Infelizmente, contudo, a conclusão de ausência de hierarquia entre direitos fundamentais que é correta acabou vulgarizando a ideia de que direitos fundamentais tão importantes como a vida podem ser preteridos sem maior consideração e de forma precipitada. A ideia de que o direito à vida, por exemplo, possa, em situações extremas, ceder diante de outros bens constitucionalmente protegidos não pode ser confundida com a certeza hoje já popularizada de que essa preterição possa ser promovida de forma imprudente e irrefletida.

Para ficar em exemplo conhecido, a afirmação genérica e abstrata de que o direito à liberdade e de autodeterminação da mulher prevaleceria sempre e sempre sobre o direito à vida no caso do aborto é uma dessas precipitadas generalizações que temos o dever constitucional de evitar. A vida pode ceder diante de outros direitos fundamentais isso é certo , mas apenas em situações excepcionalmente fundamentadas, em que a carga argumentativa se manifeste induvidosamente a favor de outros direitos fundamentais. Para nosso infortúnio, contudo, nesse terreno de colisões de direitos fundamentais, os casos de fácil e de evidente solução são menos comuns do que as respostas arbitrárias e ligeiras que acabam suscitando.

Para reafirmar a dificuldades dessas situações, permito-me referir a caso singular, bastante conhecido, a que me dediquei na minha tese de doutorado, em que uma senhora alemã, membro convicto de uma comunidade religiosa (Testemunha de Jeová), por ocasião do nascimento de seu quarto filho, depois de complicações no parto e de uma anemia profunda, foi aconselhada pelos médicos a internar-se num hospital para realizar uma transfusão de sangue. Ela, entretanto, manifestou-se de forma reiterada e peremptória contra a internação no hospital, sendo que, ao invés do tratamento médico que lhe era indicado, apenas orou por sua saúde com os irmãos de sua comunidade religiosa, tornando, então, impossível a transfusão de sangue. Em virtude disso, a mulher, que se manteve consciente até o último instante, acabou falecendo [1] .

Seu marido, compartilhando as mesmas convicções religiosas e com a sincera crença de que a paciente poderia recobrar a saúde se orasse a Deus pedindo ajuda, negou-se a convencê-la no sentido de realizar a transfusão, sendo por isso processado e condenado por omissão de socorro ( unterlassene Hilfeleistung ), conforme previsão do parágrafo 330, c, do Código Penal alemão (StGB). O caso passou a ser conhecido como Gesundbeter (aquele que reza pela saúde) e foi submetido ao Tribunal Constitucional alemão, precisamente, pelo marido da paciente, que interpusera recurso constitucional ( Verfassungsbeschwerde ) contra a condenação imposta pela justiça ordinária.

Graças à sua legítima convicção religiosa (concordemos ou não), que lhes autorizava a se manifestar e a se conduzir de acordo com sua fé, marido e mulher, como testemunha de Jeová, estavam convencidos da ideia de que até mesmo uma doença congênita poderia ser mais adequadamente curada pelo poder da oração. Além disso, com o preço da própria vida e com o sofrimento de seus filhos, acatavam literalmente as prescrições bíblicas, do Velho Testamento, que expressamente proibiam os fiéis de comerem ou receberem sangue humano.

Por conta desses fatos, o 1º Senado do Tribunal acabou por tomar uma decisão especialmente significativa no que respeita às limitações ao direito fundamental da liberdade de crença e o direito à vida [2] . Verificando que ocorrera, no caso, uma colisão entre a liberdade de religião e outros bens constitucionais (vida, saúde, etc.), o Tribuna...

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