A solitária voz de Adaucto Lúcio Cardoso e o processo constitucional brasileiro
Poucas questões suscitaram tantas e tão intensas discussões no direito constitucional brasileiro quanto a da eventual discricionariedade do Procurador-Geral da República para oferecer ou não a representação de inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal.
Na linha do desenvolvimento iniciado em 1934 e continuado na Constituição de 1946, com a possibilidade de propositura de representação interventiva, passou-se a entender, após a EC 16/65, que o Procurador- Geral da República poderia oferecer representação de inconstitucionalidade e apresentar, posteriormente, parecer contrário. Essa disciplina foi mantida na Constituição de 1967 e na EC 1, de 1969.
Em 1970, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), único partido da oposição representado no Congresso Nacional, solicitou ao Procurador-Geral da República, titular exclusivo do direito de propositura, a instauração do controle abstrato de normas contra o decreto-lei que legitimava a censura prévia de livros, jornais e periódicos[1]. Este determinou, contudo, o arquivamento da representação, negando-se a submeter a questão ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que, na sua opinião, não estava constitucionalmente obrigado a fazê-lo.
O MDB propôs reclamação perante o Supremo Tribunal Federal, pugnando pela obrigatoriedade de o PGR conduzir a representação à apreciação da Corte, mas a ação foi rejeitada. O STF entendeu que apenas o Procurador-Geral poderia decidir se e quando deveria ser oferecida representação para a aferição da constitucionalidade de lei[2].
Ao proferir voto – vencido – no julgamento da Rcl. 849, Adaucto Lucio Cardoso evidenciou sua preocupação histórica com a decisão que se estava a delinear. Em sua percepção, “a conjuntura em que nos vemos e o papel do Supremo Tribunal Federal estão a indicar, para minha simplicidade, que o art. 2º, da L. 4.337, de 1.6.64, o que estabeleceu para o Procurador-Geral da República foi o dever de apresentar ao S.T.F., em prazo certo, a argüição de inconstitucionalidade formulada por qualquer interessado. O nobre Dr. Procurador apreciou desde logo a representação, não para encaminhá-la, com parecer desfavorável, como lhe faculta o Regimento, mas para negar-lhe a tramitação marcada na lei e na nossa Carta Interna. Com isso, ele se substituiu ao Tribunal e declarou, ele próprio, a constitucionalidade do Dl. 1.077-70. Essa é para mim uma realidade diante da qual não sei como fugir.”
O ministro fez referência à Lei 4337/64, que regulou a representação de inconstitucionalidade e, na redação do artigo 2º, previu que “se o conhecimento da inconstitucionalidade resultar de representação que lhe seja dirigida por qualquer interessado, o Procurador-Geral da República terá o prazo de 30 (trinta) dias, a contar do recebimento da representação, para apresentar a arguição perante o Supremo Tribunal Federal.”.
Registre-se ainda que a questão foi inserida ao ordenamento constitucional pela EC/65 (representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral) e sofreu pequena alteração na Constituição de 1967 e de 1967/69 (representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual[3]). Em 1970, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal[4] positivou, no plano processual, a orientação que balizara a instituição da representação de inconstitucionalidade entre nós e consagrou: provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário (artigo 174, parágrafo 1º).
Nesse contexto, o ministro Luiz Gallotti interpelou Adaucto Lucio Cardoso sobre o Regimento vigente do STF e indicou que, segundo seu texto, o Procurador-Geral poderia encaminhar a representação com o parecer contrário. Retrucou Adaucto, então: “considero o argumento de Vossa Excelência com o maior apreço, mas com melancolia. Tenho a observar-lhe que, de janeiro de 1970 até hoje, não surgiu, e certamente nem surgirá ninguém, a não ser o Partido Político da Oposição, que a duras penas cumpre o seu papel, a não ser ele, que se abalance a argüir a inconstitucionalidade do decreto-lei que estabelece a censura prévia.”.
A discussão prosseguiu e Gallotti questionou se escritores ou empresas não poderiam fazê-lo, já que o caso versava sobre censura prévia de livros, jornais e periódicos, ao que Adaucto ponderou: “V. Excia. está argumentando com virtualidades otimistas, que são do seu temperamento. Sinto não participar das suas convicções e acredito que o Tribunal, deixando de cumprir aquilo que me parece a clara literalidade da L. 4.337, e deixando de atender também á transparente disposição do § 1º, do art. 174 do Regimento, se esquiva de fazer o que ...
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