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25 de Abril de 2024

Máxima do "quem cala consente" é o perigo do silêncio do acusado

Publicado por Consultor Jurídico
há 9 anos

As máximas populares são lugares comuns reiterados no diaadia e que formam, querendo ou não, o aparato cognitivo da população, dentre eles os metidos no processo penal. Por mais que o acusado tenha o direito de permanecer em silêncio, não raro sublinha-se, no contexto da fundamentação das decisões judiciais, que o acusado não quis apresentar sua versão. O exercício de seu silêncio é tomado como uma confissão silenciosa da culpa. A Constituição da República garante o direito ao silêncio (artigo 5º, inciso LXIII), na linha do devido processo legal substancial, afinal ninguém seria obrigado a produzir prova contra si mesmo. Mas o exercício do direito é mais complexo.

Compreendendo o processo como jogo de informação, a atitude do acusado em permanecer em silêncio ainda encontra forte resistência dos agentes processuais que muitas vezes entendem o exercício do direito como uma forma de desrespeito. Muitos magistrados e membros do Ministério Público tomam o exercício do direito como uma forma de depreciação com suas funções, uma forma “indolente” ou “inatural” de comportamento, quando não invocam, ainda, o não recepcionado artigo 186 do Código de Processo Penal conforme se infere: “O juiz criminal não se pode permitir nenhuma ingenuidade no exercício de suas funções (...) O silêncio do réu não implica em confissão, mas é significativa a atitude de quem, preso e acusado injustamente de crime gravíssimo, prefere manter-se calado, pois a reação natural de qualquer pessoa inocente é proclamar veementemente a sua inocência, esteja onde estiver.” (TRF-4, Ap. Criminal 6.656, julgado em 12/11/2001).

Entre o dizer e o não dizer, aponta Eni Orlandi, existe um intrincando processo de atribuição de sentido, pelo qual as próprias palavras transpiram o sentido, como se do silêncio se deduzisse, imaginariamente, o sentido (que se quiser). O imaginário aqui preenche o sentido que não se deu a partir da tática silenciosa. Daí os riscos de não dizer. Não raro, se pôr em silêncio gera uma dimensão implícita do que se poderia dizer. Daí a importância de se estudar os efeitos do silêncio no processo penal. Eni Orlandi sustenta que “há um sentido no silêncio. O silêncio foi relegado a uma posição secundária, como excrescência, como o ‘resto’ da linguagem. Nosso trabalho o erige em fator essencial como condição do significar.”[1] Por mais que a Análise do Discurso pontue uma leitura ideológica e histórica do imaginário, diferentemente da articulação de Lacan, mesmo assim, os efeitos da evidência cognitiva decorrentes do preenchimento subjetivo do silêncio deslizam para o contato entre as verdades sabidas, singelas e facilitadoras da decisão penal. Os cúmulos de sentido, as palavras vedetes, os mantras enunciados no ambiente forense, encontram solo fértil no silêncio do acusado. Opera-se na lógica da costura imaginária e ideológica do sentido ao silêncio. A ordem ao discurso possui como pano de fundo o ponto de vista ideológico, tomado de assalto pela postura inquisitória de descoberta da verdade real, ainda existente, não fosse a sua matreira ingenuidade, na postura do senso comum teórico (Warat) do Processo Penal.

O silêncio articula um convite ao vazio a ser preenchido. Ao mesmo tempo em que preenche a narrativa, autoriza seu preenchimento, dada a confusão entre o vazio e o nada. Daí o paradoxo e os riscos de seu exercício. Com o silêncio as coordenadas do sentido migram, sendo necessário compreender autenticamente a noção de sentido para que não se corra o risco de ser engolfado pela postura paranoica (Franco Cordero e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), de se saber o que o silêncio diz. Deixar que o silêncio opere no processo penal, especialmente no lugar do acusado, precisa, assim, ser problematizado. Não é uma simples tática processual. Pode gerar consequências avassaladoras. Isso porque no jogo da linguagem e das imagens que evocam, como metáfora, no contexto do processo penal, a alucinação probatória (Rui Cunha Martins), pode gerar consequências confirmatórias pela máxima não dita nos processos penais de que “quem cala consente.”

Helen Hartmann pontua que “entender o silêncio como uma opção indolente ou inatural por não apresentar uma versão dos fatos — ponderação que vem a lume quando do convencimento do magistrado — é valorá-lo tal qual a uma confissão. Quando o magistrado entende que todo o inocente necessariamente verbaliza sua versão, condena aquele que se cala a uma confissão velada. O silêncio não deve pesar ao convencimento porque nada é. Do contrário, trata-se de torturar racional e psiquicamente, por meio das implicações do exercício do direito ao silêncio.”[2] Daí a importância da jogada processual do interrogatório.

A segurança, tranquilidade e coerência do interrogatório são fundamentais. É o gran finale do palco probatório[3]. A possibilidade de articulação de uma narrativa coerente, a qual explique, com sentido, a conduta. Não pode ser extraordinária (droga caiu do céu, foi droga achada, etc.), pois deve abrir a possibilidade de ser crível. A postura do acusado quanto mais arrogante pior, suas vestes, a preparação, nervosismo (alguém muito calmo ou agitado não passa boa impressão). E o interrogatório é, sempre, muito arriscado. Sempre. Daí que diante da (in) capacidade do acusado, muitas vezes, com os riscos do silêncio (sempre diz, via imaginário), uma ação coordenada depois de finalizada a produção probatória pode indicar que se deve calar, a fim de minimizar os efeitos adversos. Anote-se que a religião ocupa um papel de destaque no interrogatório, dada a substituição do Padre pelo Juiz no imaginário coletivo, e muitas vezes o acusado precisa se confessar[4].

Como o silêncio pode deslizar em diferentes sentidos para o sujeito, especialmente no ambiente processual brasileiro, ficar em silêncio pode ser um risco a ser mensurado. Exercer direitos no Brasil pode ser uma tarefa clandestina e arriscada, principalmente quando se está movido por verdades absolutas e autoritárias. O risco está posto. A análise deve ser feita em cada processo penal, conforme seus personagens. A dinâmica do processo é única. O silêncio, todavia, pode ganhar sentidos inesperados, dado que os efeitos do silêncio são imprevisíveis. Afinal, quem cala, nem sempre consente. Certo?

[1] ORLANDI, Eni. As formas do silêncio. Campinas: Editora Unicamp, 2007, p. 12.
[2] HARTMANN, Helen. Da reforma (retórica) do art. 186 do CPP à inefetividade (persistente) do direito ao silêncio. In: MORAIS DA ROSA. Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis; Conceito, 2006, 149-168
[3] HARTMANN, Helen. Da reforma (retórica) do art. 186 do CPP à inefetividade (persistente) do direito ao silêncio. In: MORAIS DA ROSA. Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis; Conceito, 2006, 149-168.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2015.

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