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19 de Abril de 2024

Dilemas da advocacia pública vão além do registro na OAB

Publicado por Consultor Jurídico
há 9 anos

Uma das notícias jurídicas mais surpreendentes da semana foi a interposição, pelo Procurador-Geral da República, de Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o artigo , parágrafo 1º, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil), que impõe a advogados públicos inscrição na OAB. Na peça inicial, o Procurador-Geral da República sustentou que o advogado público é servidor público, investido em cargo de provimento efetivo e remunerado pelo Estado, e que exerce atividade de advocacia, mas sujeitando-se a regime próprio (estatuto específico), não necessitando de inscrição na OAB nem a ela se submeter. O PGR pediu ainda medida cautelar, muito embora a lei questionada esteja em vigor há mais de 20 anos, sem qualquer notícia de controvérsia a respeito do dispositivo ora questionado.

A ação do Ministério Público coloca o foco principal sobre a natureza e a importância da advocacia pública. Antes de qualquer consideração a respeito do assunto, é importante alertar o leitor a respeito da emissão de opiniões por parte de quem, como este autor, não é advogado ou integrante das carreiras envolvidas: corre-se o risco de que a avaliação seja desconectada com a realidade interna e ainda carente de dados que a embasem. Por outro lado, a ausência de interesse direto na questão permite a emissão de opinião isenta, sem a natural influência dos sentimentos próprios mais inconfessáveis com relação à carreira. Não obstante, destaco que a interação com advogados públicos no âmbito acadêmico e nas relações processuais administrativas reforçou a impressão já existente a respeito da importância da carreira para o Estado e para a Administração Pública.

De acordo com a Constituição, em linhas bem gerais, incumbe à advocacia pública a representação judicial, consultoria jurídica e assessoramento da União, dos Estados e do Distrito Federal. O ingresso de membro na carreira mediante concurso público de provas e títulos foi expressamente exigido para a AGU e para a Advocacia Pública dos Estados. Não é possível tratar genericamente da advocacia pública sem lembrar que o Estado Brasileiro é Federal, composto por diferentes entes com autonomia política e administrativa. Desta forma, a abordagem genérica à advocacia pública envolve a esfera federal, a advocacia dos Estados e Distrito Federal e também a advocacia dos 5570 municípios brasileiros. A realidade, os problemas e dilemas são diferentes em cada uma das esferas.

A advocacia pública municipal talvez seja a mais cercada por controvérsias. A ausência de qualquer previsão a respeito na Constituição é interpretada, por doutrinadores importantes, como um silêncio eloquente: ao contrário da União e dos Estados, não haveria obrigatoriedade de institucionalizar a procuradoria municipal, ficando a respectiva análise de conveniência e oportunidade ao cargo de cada município. Na prática, na maioria dos municípios de pequeno porte, realmente não existe procuradoria, tampouco o cargo de procurador ou advogado público (seja efetivo ou em comissão). A realidade nua e crua é descrita pelo atuante Promotor de Justiça Reuder Cavalcante Motta: “Municípios ilegalmente fazem sucessivos contratos com advogado ou sociedade de advogados, outorgando-lhes procurações para atos em juízo. Agentes municipais recebem dos advogados contratados orientações jurídicas em caráter continuado e para objetos diversos, em regime de execução indefinido e frouxo, por preços não justificados, a maioria acerca de fatos corriqueiros da administração, em verdadeira usurpação de função pública e violação ao princípio do concurso público, por meio de terceirização ilegal. O mais aviltante de tais situações é que, em não poucas vezes, os advogados são diretamente contratados, valendo-se de falsas declarações de notória especialização dos profissionais e sofríveis justificativas da escolha do profissional e da singularidade do objeto contratado, quase sempre definido de forma abrangente e vaga. Advogados contratados são escolhidos pelos Prefeitos entre aqueles que os defenderam durante o processo eleitoral que os levou ao cargo, em absoluta situação de conflito de interesses e, daí, improbidade administrativa. Nesta situação, sequer há ambiente para a cobrança ou fiscalização dos serviços contratados. Tais contratações se fazem em violação não só em violação à necessidade de criação e estruturação dos órgãos de Advocacia Pública Municipal como apontado supra, como também às várias prescrições legais da Lei de Licitações e Contratos, Lei nº 8.666/93 e, até mesmo, Súmula do Tribunal de Contas da União.” [1]

Ainda que realmente possa não existir, no caso concreto de alguns municípios, necessidade para a instalação de um órgão com orçamento, sede, procuradores e funcionários próprios, penso que o mínimo que se extrai da Constituição é a obrigatoriedade de exercício da advocacia pública em regime de cargo, efetivo ou mesmo em comissão (tendo como parâmetro a possibilidade de chefia da AGU ser exercida por advogado sem vínculo necessário com a carreira), em razão do caráter permanente e da relevância das atividades desenvolvidas. O alegado relevo do critério “confiança”, comumente utilizado para justificar a contratação direta de advogados municipais para as atividades gerais de “consultoria jurídica”, não tem cabimento pelo simples fato de que não foi utilizado pela Constituição para os demais entes da Federação, explicitamente obrigados a institucionalizar a advocacia pública. Essa afirmação não impede a contratação de serviços especializados nos casos admitidos pela legislação, em que a singularidade do serviço exija o desempenho por profissional de notória especialização.

A advocacia pública dos Estados talvez ocupe melhor posição quando comparada com os demais entes. A despeito das diversas diferenças no regime jurídico das Procuradorias no diversos Estados, parece haver relativo consenso no tocante à importância da instituição e de seus integrantes. Uma questão específica ganhou novo fôlego durante o processo de indicação e sabatina do ministro Luiz Fachin ao Supremo Tribunal Federal: a possibilidade do exercício da advocacia privada pelos advogados públicos, existente em algumas esferas e inexistente em outras. Trata-se, certamente, de uma reivindicação legítima da maioria das carreiras da advocacia pública. Tal fato, entretanto, não implica necessariamente que seja o melhor caminho para os interesses do Estado e para o interesse público.

A Advocacia Geral da União passa por momento tormentoso, marcado por intensa mobilização dos integrantes das três carreiras que a integram na defesa de suas prerrogativas e na busca de melhorias remuneratórias e, em especial, estruturais. Em um movimento organizado e crescente, grande parte dos advogados públicos federais tem entregado suas funções de chefia à AGU e aos órgãos representados como forma de demonstrar sua insatisfação com o alto nível de responsabilidade incompatível com a falta de carreira de apoio, de estrutura física e material adequados e o baixo padrão remuneratório comparado às demais carreiras jurídicas públicas, fatores que inviabilizam o eficiente desempenho de sua missão constitucional.

Feitas considerações genéricas a respeito da advocacia pública nas três esferas, é hora de retomar o rumo proposto. A advocacia é função essencial à justiça, como estabelece a Constituição, tendo importante papel na configuração do Estado Democrático de Direito: a ela cabe garantir a efetivação do direito fundamental de acesso à justiça. Como ensina o professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, as funções essenciais à justiça são órgãos da sociedade inseridos no aparelho de Estado para o exercício de diversas funções de controle de juridicidade (de fiscalização, de promoção e de defesa), cobrindo todo o espectro de direitos garantidos pela Constituição. No tocante à advocacia pública, o mestre ressalta sua importância pelo fato de sua atuação abranger “todo o complexo parlamentar e executivo da gestão pública, não mais se restringindo, como no passado, à sua mera fase administrativa, envolvendo, portanto, todo o espectro do controle de juridicidade, ou seja: do planejamento, da orçamentação, da execução e, notadamente, da efetivação de seu resultado. Por isso, em razão de seu campo de atuação jurídica se ter tornado profundamente imbricado com a atuação política (já que esta não mais poderá se processar nem fora nem, muito menos, acima do Direito) a missão da Advocacia de Estado se apresenta, cada vez mais, como imprescindível à realização neutral da justiça e, em consequência, da democracia”[2].

A advocacia pública é incumbida da defesa dos interesses do Estado, e não dos interesses do Governo que não coincidam com aqueles. Abstenho-me de abordar a questão relativa à congruência da defesa do interesse público e da eventual intersecção com a missão institucional do Ministério Público em razão das limitações de espaço e do propósito deste artigo. O fato é que o Procurador Público tem como uma das suas missões viabilizar juridicamente serviços públicos e políticas públicas propostas legitimamente pelos agentes políticos eleitos. Para além de suas opiniões pessoais, o advogado público tem o dever funcional de oferecer o aconselhamento e as soluções jurídicas necessárias para a implementação das atividades do Estado-Administração.

Essa relevante função caracteriza a advocacia pública como carreira de Estado, exigindo garantias e responsabilidades especiais. As carreiras de Estado são necessariamente institucionalizadas em razão de sua permanência, contrapostas às mudanças dos governos. A institucionalização das carreiras não se resume à exigência de concurso público para ingresso, mas impõe valorização profissional e vencimental assim como as demais funções típicas de Estado, notadamente Judiciário e Ministério Público. Maior grau de autonomia administrativa e orçamentária são também necessários para que o regime jurídico da instituição se aproxime das demais carreiras jurídicas típicas de Estado. É interessante perceber como União e Estados, que possuem estruturas do Poder Judiciário e do Ministério Público, costumam dispensar à advocacia pública tratamento inferior à dessas funções. A propósito, a busca constante pela equiparação de direitos e vencimentos para com Magistratura e Ministério Público exige, por imperativo lógico, a imposição de semelhantes vedações voltadas à exclusividade da dedicação. Convém ainda notar que nem sempre a exigência de que o chefe da instituição pertença à carreira garante a maior busca por profissionalização e autonomia administrativa, como se percebe com a comparação da gestão do atual ministro da AGU com seu antecessor, hoje ministro do STF.

Essas colocações possuem relação com ao problema inicial, qual seja, a submissão à OAB. A submissão de advogados públicos à OAB é questão de identidade e pertencimento: pertencer e identificar-se com uma categoria profissional que possui prerrogativas próprias para a realização de sua relevante função social, ainda que para defender ou aconselhar o Estado. Sabe-se que essa submissão ocorre considerando-se a OAB como entidade fiscalizadora do exercício profissional, não como entidade associativa. Ao mesmo tempo, a submissão à OAB não tem o condão de excluir os procuradores públicos do âmbito de competência das demais instâncias disciplinares e funcionais públicas às quais se sujeitam os servidores públicos. Os objetivos das diversas estruturas de controle é diverso; as relações jurídicas estão sujeitas a regras distintas. Em uma comparação que ganhou corpo durante a semana, não se imagina que um médico que seja unicamente servidor efetivo de um hospital público não esteja sujeito às competências do Conselho Regional de Medicina.

Uma questão aparentemente acessória assume feições mais relevantes nesse debate: o direito à percepção dos honorários de sucumbência que, de acordo com o Estatuto da Advocacia, pertencem aos advogados. Estranhamente, não há uniformidade nas diversas esferas da federação quanto à percepção de honorários por parte dos advogados públicos: o recebimento ocorre em alguns Estados e Municípios, mas não na União. Aliás, a peça inicial da ADI aduz que, em sentido amplo, existem diversos “advogados públicos, embora com clientes diferentes e específicos (o Ministério Público defende os interesses da sociedade; a Defensoria Pública, os interesses dos necessitados; e a Advocacia de Estado, integrada pela AGU e pelas Procuradorias Estaduais e do DF, os interesses estatais, que têm como destinatário final o povo brasileiro)”. Declarada a inconstitucionalidade suscitada, restará saber se os honorários continuarão a ser percebidos pelos advogados, se serão recebidos integralmente pelo ente estatal ou mesmo se poderiam ser divididos por todos advogados públicos em sentido amplo, incluindo o próprio Ministério Público.

O fim da submissão da advocacia pública à OAB colocaria aquela função em um limbo jurídico, sem as prerrogativas e também responsabilidades impostas a toda a categoria. Certamente seria (será?) o primeiro passo para que o Estado comece a perder as armas de que dispõe em paridade com os particulares e com as demais funções essenciais à justiça para apresentar-se em juízo na defesa de seus legítimos interesses.

[1] MOTTA, Reuder Cavalcante. A (in) compreendida Advocacia Pública Municipal. Fórum Municipal & Gestão das Cidades – FMGC, Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 45-54, jan./fev. 2013.
[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito: A busca do equilíbrio entre o político e o jurídico: revisitando a missão da Advocacia de Estado. Debates em Direito Público, Brasília, ano 12, n. 12, p. 9-17, jan./dez. 2013.

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