Proibição a livro de Adolf Hitler ignora solenemente dispositivos constitucionais
Na terça-feira (2/2), o juízo da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro proferiu decisão cautelar proibindo, temporariamente, a venda do livro Minha Luta (Mein Kampf, 1925), de Adolf Hitler, que recentemente ingressou em domínio público. O juiz acolheu o pleito do Ministério Público, baseado, em última análise, em tipo penal previsto no artigo 20, caput e parágrafo 2º, da Lei 7.716/89 (diploma que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor)[1]. A decisão pode ser lida aqui.
É de bom alvitre salientar que o objetivo dos autores deste texto não é o de bradar uma defesa do conteúdo da obra e/ou de qualquer “exemplo” que se queira seguir da vida de Hitler. Por honestidade intelectual (desvelamento ideológico), os autores consideram a doutrina do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) uma excrescência megalomaníaca e pseudocientífica. Entretanto, isso não impede questionamentos e análises de caráter objetivo (não solipsista) quanto à significação do referido pronunciamento judicial na ordem jurídica brasileira e, mais, à consistência epistemológica dos fundamentos apontados pelo respeitável juízo.
Este é o núcleo argumentativo que embasa a aludida decisão: o famigerado best seller nazista, curiosamente escrito por Hitler durante sua confortável estada no cárcere, não pode circular em terras brasileiras porquanto seu conteúdo ideológico — darwinismo social, xenofobia, espaço vital etc. — afrontaria a “dignidade da pessoa humana” (CF, artigo 1º, III), a “prevalência dos direitos humanos” (CF, artigo 4º, II) e o “repúdio ao terrorismo e ao racismo” (CF, artigo 4º, VIII), em escala constitucional. Ao comercializar seus exemplares, configurar-se-ia, em tese, a prática, o induzimento ou a incitação da discriminação ou do preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei 7716/89, artigo 20, caput), em escala infraconstitucional.
Ora, basta um pouco de consciência filosófica para compreender a historicidade ou o valor historiográfico a ser atribuído a Mein Kampf: abranger sua significação axiológica no plano da história perfaz atitude completamente diferente do uso efetivo para o fim ilícito ou juridicamente reprovável. Com base na filosofia culturalista do saudoso professor Miguel Reale e em seu “criticismo ontognoseológico”, pode-se dizer que, em íntima relação dialética com sujeito cognoscente (que exerce um papel ativo nesse processo), existem diferentes tipos de objetos cognoscíveis, quais sejam: objetos naturais (físico-químicos e psíquicos), objetos ideais, valores e objetos culturais. Originam-se da dicotomia entre ser (objetos naturais e ideais) e dever ser (valores), e do ser enquanto deve ser (objetos culturais).
Sem maiores aprofundamentos, quer-se dizer que os indivíduos (sujeitos cognoscentes) podem ter diferentes aproximações valorativas sobre os objetos, sejam eles naturais — como uma pedra (rubi ou calcário), considerada bela ou feia (valores estéticos), bem como útil ou inútil (valores econômicos) — ou mesmo culturais, como o texto hitleriano. Afinal, de um valor não decorre sempre o mesmo e único dever ser, pois se “a experiência axiológica obedecesse às linhas de um determinismo de valorações, a História do homem, e a História do Direito, em particular, não apresentariam tantos contrastes e contradições”[2]; por sua vez, o “tempo histórico é caracterizado por seu conteúdo axiológico e, mais objetivamente, por sua significação, ou seja, por traduzir-se em sinais de prevalência de sentido”[3].
Hodiernamente, à obra Mein Kampf são atribuídas as seguintes valorações: a) positiva, relacionada ao seu conteúdo ideológico e, portanto, deve ser divulgada ou comercializada para que haja a alteração na tábua axiológica predominante (objetivo de grupos neonazistas, por exemplo) com a realização do programa ali proposto; b) negativa, relacionada ao seu conteúdo ideológico e, portanto, não deve ser divulgada ou comercializada por contrariar a tábua axiológica predominante, evitando-se a realização do programa ali proposto; e c) positiva, relacionada não ao seu conteúdo, mas ao seu impacto na História da humanidade (significado historiográfico) e, portanto, deve ser divulgada ou comercializada a fim de produzir e adquirir conhecimento filosófico e científico — realização de outro valor positivo — e, também, evitar a realização do programa ali proposto depois de conhecê-lo — fundada na valoração negativa sobre o conteúdo mencionada anteriormente.
A decisão do juízo da 33ª Vara Criminal do RJ, claramente, desconsidera tal perspectiva axiológica e impõe um desfecho único a todos os jurisdicionados: todo historiador, por exemplo, necessariamente estaria sofrendo a imputação de causar um dano com o estudo sobre o livro: qualquer tese de doutorado envolvendo Mein Kampf seria necess...
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