Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC
A Constituição do Brasil, na esteira dos ordenamentos contemporâneos, estabeleceu o dever de fundamentação no artigo 93, IX. Na verdade, lida na melhor luz, a Constituição diz que a fundamentação é condição de possibilidade de uma decisão ser válida. Mais do que isso, esse dever de fundamentação coloca uma pá de cal sobre antigos entendimentos de que uma decisão poderia ser dada por livre convencimento, desde que esse fosse “motivado”. Evidentemente que motivação não é o mesmo que fundamentação. Admitir que motivação seja igual ou possa substituir o conceito de fundamentação é afirmar que o juiz primeiro decide — e para isso teria total liberdade — e, depois, apenas motiva aquilo que já escolheu. É/seria a morte da Teoria do Direito e do Direito Processual, porque a decisão ficaria refém da (boa ou má) vontade (de poder) do julgador. Se isso é/fosse verdade, o processo seria inútil. E tudo se transforma (ria) em argumentos finalísticos-teleológicos. O processo seria apenas um instrumento ou algo que coloca uma flambagem em escolhas discricionárias, quando não arbitrárias. Perguntemos aos que pensam que motivação é o mesmo que fundamentação ou àqueles que dizem que o juiz primeiro decide para, só depois, “fundamentar” (sic), se, no aeroporto, desejam que o funcionário escolha quem deve passar pelo aparelho de raios X. Qual seria a resposta? Deixemos que o funcionário seja discricionário? Que escolha? Que “decida”: “você, sim”, “você, não”? Afinal, ele pode “motivar” depois...
Portanto, processo é condição de possibilidade. E, nele, a fundamentação da decisão é condição da democracia. Fechando o cerco sobre velhos adágios e serôdias teses, o legislador do CPC estabeleceu algumas blindagens contra a subinterpretação do artigo 93, IX, da CF: os artigos 10 (proibição de não surpresa), 371 (fim do livre convencimento), 489 (os diversos incisos que trazem uma verdadeira criteriologia para decidir) e o 926 (que estabelece a obrigatoriedade de a jurisprudência ser estável, integra e coerente)[1].
Pois é sobre o artigo 926 que recai uma carga epistêmica de infinito valor. Por várias razões. Primeiro, porque um modo de evitar a jurisprudência lotérica é exigir coerência e integridade; segundo, a garantia da previsibilidade e da não surpresa; terceira, o dever de accountability em relação à Constituição, justamente ao artigo 93, IX. E um quinto elemento: o Supremo Tribunal Federal deve também manter a coerência e integridade nas suas próprias decisões. Em todas. Nesse sentido, cresce igualmente o papel do STJ, locus da unificação do Direito infraconstitucional.
Conceitualmente: haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada a integridade do Direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário. Isso somente pode ser alcançado por meio de um holismo interpretativo, constituído a partir de uma circularidade hermenêutica. Coerência significa igualdade de apreciação do caso e igualdade de tratamento. Coerência também quer dizer “jogo limpo”.
Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas; coloca efetivos freios, por meio dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é antitética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade. Ou seja: por mais que o julgador desgoste de determinada solução legislativa e da interpretação possível que dela se faça, não pode ele quebrar a integridade do Direito, estabelecendo um “grau zero de sentido”, como que, fosse o Direito uma novela, matar o personagem principal, como se isso — a morte do personagem — não fosse condição para a construção do capítulo seguinte. Exemplo interessante exsurge desde já: pode parecer, para os procuradores do Estado de todo o Brasil, que seja injusto, inadequado ou impertinente que o governador do estado possa nomear livremente o procurador-geral do Estado. Entretanto, a integridade do Direito aponta para a prerrogativa do chefe do Poder Executivo, conforme deixou claro o Supremo Tribunal Federal na decisão do ministro Lewandowski, ao deferir liminar na ADI 5.211 suspendendo a eficácia da Emenda a Constituição da Paraíba 35/2014, que, no caso, impedia o governador de escolher o procurador-geral des...
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